08. Todos os Caminhos (3)

“o escuro que se vê...”





Nos dois últimos textos, tratei das duas primeiras partes da música “Todos os Caminhos” de Lenine. Resta, porém, tratar da terceira e última parte que começa assim:


“Por tudo que andei e por tanto que faltar
não dá pra se prever nenhum futuro
o escuro que se vê quem sabe pode iluminar
os corações perdidos sobre o muro
e o certo é que eu não sei o que virá.”

Bem, nada mais pós-moderno do que uma frase como esta que diz que “o escuro pode iluminar”... E, para quem se acostumou a olhar o mundo em tons totalmente claros ou escuros, a penumbra sempre é algo meio desconfortante. Busquemos, então, “esclarecer” o significado desta expressão.

Vinicius de Moraes dizia (cantava) que para fazer um bom samba é preciso um bocado de tristeza – pois “o samba é a tristeza que balança \ e a tristeza tem sempre uma esperança de não ser mais triste não”.

Dizem também que para se compor um bom blues é preciso experimentar o sofrimento. E o blues assim pode ser compreendido como uma maneira de se colocar, então, acima dessa dor presente.

Algumas das mais belas páginas da literatura universal foram produzidas quando seu autores passavam por situações difíceis – e “quem sabe”, nessas condições, continuar escrevendo a obra era não só uma necessidade econômica mas também um imperativo existencial.

Algo semelhante se observa no plano das poesias onde mesmo o poeta sendo, como diria Fernando Pessoa, um “fingidor”, há uma boa dose de verdade que causa, no leitor, uma identificação mesmo quando o sofrimento se dá em circunstâncias diferentes. Foi justamente por um fato desses que um poema de um inconfidente brasileiro foi traduzido para o russo, por um dos maiores poetas daquela língüa, ainda no século XIX quando os meios de comunicação eram bastante precários.

A escuridão, ou seja, o sofrimento, a desorientação ou qualquer outra circunstância ou período da vida que nos impeça de ver as coisas claramente “quem sabe” - como diz a música de Lenine – pode servir como luz para outras pessoas que, mais tarde, venham a apreciar o poema que elaboramos, a música que produzimos, ou a reflexão que escrevemos em momentos ou em dias muito distantes dos nossos sonhos de felicidade mas que, enfim, fazem parte da vida como já escreveu um sábio do passado:

“Se, pois, o homem viver muitos anos,
regozige-se em todos eles;
contudo lembre-se dos dias das trevas,
porque hão de ser muitos.”
[Eclesiastes 11:8]


Jó foi um homem que teve muito dias ruins em sua vida. Não merecia, mas teve. Mas, como é notório: não vivemos só o que merecemos nesta vida. E, aliás, talvez seja mesmo melhor desta maneira pois, assim, ao menos podemos ter esperança de redenção. E foi esta a esperança que Jó teve quando, em meio à escuridão desses dias ruins, disse:

“Pois eu sei que meu Redentor vive,
e que por fim se levantará sobre a terra.”
[ Jó 19:25 ]

Há pelo menos dois aspectos interessantes nesta passagem bíblica. O primeiro é o de que, poucos versículos antes, Jó desejava muito que suas palavras fossem registradas para a posteridade – o que mostra a importância de registrarmos/manifestarmos o nosso sofrimento e a esperança de superá-lo. Se não o fizermos, talvez as próximas gerações desaprendam a lidar com a dor. Aliás, a julgar por algumas evidências atuais, é possível que a nossa geração já tenha desaprendido.

O segundo aspecto importante, da passagem mencionada, é o de que Jó professa esta sua crença muito antes de sair da escuridão. Será que se não acreditasse na existência do seu redentor, um dia ele teria saído dessas trevas? É possível que sim... Mas que relevância teria, isso, para nós hoje em dia?