19. Sentimental (1)


Razão aterra





A literatura russa é conhecida como uma das melhores do mundo, o que se dá devido à uma feliz combinação de excelentes escritores e temas interessantes.

Como se sabe, um dos maiores representantes desta literatura é Dostoiévski, que hoje é tido como um grande conhecedor do ser humano além de ser também, segundo um especialista, um autor "com rara sensibilidade para o social".

Na época de Dostoiévski (segunda metade do século XIX), alguns escritores defendiam uma ética, isto é, uma maneira de proceder alinhada com a tendência dos novos tempos, os quais eram então caracterizados pelo avanço no uso da razão e pelos frutos que esta, potencialmente, traria para a vida do homem.

Esta nova ética era, por aqueles que a defendiam, chamada de "egoismo racional". Segundo ela, a sociedade se tornaria melhor se cada indivíduo procurasse realizar seus próprios interesses. Assim, da soma das realizações egoistas surgiria a realização e a harmonia social.

Dostoiévski colocou-se contra essa ética e dedicou-se, nos seus grandes romances, a expor o caos social a que sua realização levaria. Em oposição a ela, nesses mesmos romances, Dostoiévski procurou desenvolver uma proposta ética alternativa baseada no amor-compaixão, isto é, no colocar-se na posição do outro.

A oposição de Dostoiévski estava ancorada não somente numa premissa cristã, de amor ao próximo, como também em algo que viria mais tarde ser descoberto pela psicanálise: que aquilo que orienta o indivíduo neste mundo não são seus interesses, mas sim seus desejos.

Uma ilustração desse argumento pode ser vista, por exemplo, no filme "Cidadão Kane" a que Lenine fez referência na canção Rosebud. Rosebud, a propósito, é uma palavra que representa, no filme, o objeto simbólico do desejo a que o protagonista dedicou a vida toda a recuperar: o amor, do qual foi privado ainda na infância.

Bem, toda essa introdução para destacar, enfim, a relevância do tema trazido pela penúltima canção do álbum InCité de Lenine: Sentimental. Seu título, em si, já sugere seu conteúdo cuja relevância tem sido menosprezada históricamente pelo ocidente.

A canção de Lenine é original porque se contrapõe a uma idéia aparentemnte bastante enraizada no senso comum: a de que o sentimento é muito bonito, mas não resolve. Assim, segundo essa premissa, se quisermos nos tornar "produtivos" devemos abraçar a razão e "ir à luta". Contra essa idéia, ao que parece, a canção de Lenine tem início justamente enumerando os grandes feitos daquele que é sentimental:

"Quem liberta o furacão?
Desamarra o mar da praia?
Desarruma o rumo?
Entorta o pumo?
Erra sem destino, amor?
Quem desata o céu da terra?
Desfera fecha, rasga o ar?
ira a luz da treva, razão aterra.
Erra, desatina. amor.
Quem move o mundo todo
apenas sendo sentimental."


O mais curioso desses versos é que eles fazem referência, mesmo que a título de alegoria, ao próprio ato criador de Deus que, segundo o livro de Gêneses, criou primeiro a luz, ou seja, segundo a letra da canção, Deus é aquele que "tira a luz da treva":


"A terra era sem forma e vazia;
e havia trevas sobre a face do abismo,
mas o Espírito de Deus pairava sobre a face das águas.
Disse Deus: haja luz. E houve luz."
[Gêneses 1:2-3]

Outras analogias ainda poderiam ser feitas, no que se refere, por exemplo, à separação entre mar e terra e ao próprio estabelecimento dos limites das marés. A canção de Lenine fala em "quem desamarra o mar da praia" enquanto que o livro de Jó fala em "quem represou o mar pondo-lhe portas" [Jó 38:8].

O que a letra da canção, enfim, nos diz? Que quem é sentimental é como Deus? Uma possível interpretação poderia, de fato, ir nesta linha como, por exemplo, quando o sociólogo e teólogo Paul Freston diz que, ao nos criar, Deus nos deu também o "mandato cultural" de sermos criativos como Ele, ou melhor, de continuarmos sua tarefa criadora.

No entanto, para o momento, prefiro destacar um outro aspecto sugerido pelo início desta canção: a de que Deus criou porque, dentre outras coisas, Ele é um ser sentimental que, a propósito, ama toda sua criação e deseja que ela reproduza essa sua qualidade amando também - conforme nos revelou Cristo em suas palavras:

"Como o Pai me amou, assim também eu [Jesus] vos amei;
permanecei no meu amor."
[João 15:9]