Introdução


O igual da diferença




"Lenine faz um tipo de música que só ele faz". Esta foi a opinião de um amigo quando tratávamos descontraidamente da obra do cantor.

De fato, Lenine possui um estilo próprio onde por um lado mistura as tradições da música brasileira (MPB e regional) com uma alguma coisa do melhor rock clássico. Outra mistura interessante é a da percussão com harmonia quando ele parece ecoar no violão a sua prática anterior na bateria.

No entanto, além dessas pontes que ele faz entre a música popular e o rock e entre o ritmo e a percussão, outra ponte, a meu ver, genial diz respeito aquele aspecto que o liga a melhor das tradições da música brasileira: a mistura entre o popular e o erudito. Mistura esta que remonta a Villa Lobos (ao levar para as salas de concerto o som do "trenzinho caipira"), à sofisticação musical do choro de Pixinguinha, e às brincadeiras que Tom Jobim fazia com as escalas e inversão de tons na bossa-nova.

Certamente existe traços dessa mistura entre o popular e o erudito nas músicas de Lenine, isto é, nas notas que compõe a melodia e harmonia de suas canções.

Porém, neste modesto livro, pretendo me deter sobre as letras das suas músicas. E para isso escolhi o álbum InCité. Não somente porque esta foi o disco através do qual tive o primeiro contato com sua obra, mas também porque neste o que é cantado parece ganhar uma relevância sem precedentes.

Claro, os outros discos sempre trouxeram letras muito bonitas. Mas, neste, os efeitos eletrônicos, isto é, a utilização dos recursos da chamada "música eletrônica" quase que desapareceram para dar lugar somente a um violão, um baixo e à percussão. E que som, isto é, que música ouvimos dessa combinação!

Mas, a voz em combinação com esses instrumentos não seriam suficientes para se explicar a genialidade do disco que foi produzido. Ouvindo-o atentamente pode-se notar que as canções foram escolhidas a dedo: oito inéditas e outras que já fizeram parte de discos anteriores.

De fato, há canções em que o ritmo é empolgante. Mas, mesmo nessas, a letra diz algo muito significativo. E as vezes, como em Relampiano, parece que se pode ouvir o eco de um Tom Jobim que gostava de misturar o alegre com o triste cuja mistura, ou melhor, convivência parecem formar o barro da nossa identidade nacional onde nos deparamos cotidianamente com a alegria e a tragédia.

Em suma, o argumento deste livro é que as letras das canções que compõem este disco (InCité) não somente nos trazem uma mensagem muito significativa, existencial, como também possuem uma coerência de discurso que está presente desde a primeira até a última faixa.

Nos capítulos seguintes, procuro me deter sobre um pouco que pude compreender das letras dessas canções. Adianto, porém, que não se trata da quintessência da apreciação de um disco. Muito pelo contrário, pode-se dizer que são apenas primeiras impressões que, no entanto, são
sinceras porque foram elaboradas com o barro que minha existência permitia, no momento, elaborar.

Nessas reflexões, o objetivo principal é compreender o que a letra da canção nos traz e
nos ensina. Não as interpreto, porém, à luz da biografia do compositor mas, sim, com o pressuposto da autonomia da obra de arte que, depois de pronta, pertence a todos aqueles que possam ver sua beleza.

Reconheço que nessas interpretações coloquei uma parte de minha bagagem espiritual, o que fiz não de maneira gratuita, mas porque as letras nos conduz também por esses caminhos onde, a meu ver, o homem se encontra consigo mesmo.

Neste pormenor, talvez, por um lado, a minha crença não seja a mesma do leitor. Mas, por outro lado, pode ser que em alguma coisa o pensamento se encontre. Ou ainda, como diria uma canção de Lenine presente apenas no DVD deste show que gerou o álbum "InCité":

"Vai que a gente pensa igual
E acha isso normal
O igual da diferença
Cada um, todo ser, tem sua crença"