11. Virou areia

“Virou Areia”




Até novembro de 2006, o museu da FAAP, em São Paulo, esteve com uma impressionante exposição chamada “deuses gregos”. Impressionante a começar pelo fato de que a entrada para ver essas esculturas de dois mil anos, emprestadas pelo museu Pergamon de Berlim, era gratuita.

A exposição era formada por duas grandes salas. Na sala, à esquerda de que entrava no prédio, estava um conjunto de esculturas interessantes mas já bem danificadas pelo tempo. Porém, a sala à direita era surpreendente, pois, apesar da idade das esculturas essas estavam em perfeito estado de conservação.

Entretanto, a entrada gratuita e a idade das esculturas (com , no mínimo, 1500 anos) não era a única coisa impressionante na exposição. A beleza estética deixava todos de boca aberta e o realismo era tão grande que, se uma delas de repente começasse a andar pelo salão, eu provavelmente acharia o fato “bastante natural”.

Como disse, o estado de conservação das esculturas era impressionante – o que não é uma conseqüência natural do material empregado mas, sim, da intervenção humana.
Foi pensando sobre isto que lembrei-me de uma reportagem que li, anos atrás, sobre os cuidados que estavam sendo tomados para a preservação da famosa estátua de Davi, esculpida por Michelangelo.

Depois de ter sido transferida da praça principal de Florença para a Galleria dell´Accademia, para uma melhor preservação, a escultura foi limpa. No entanto, antes de limpá-la, os especialistas passaram onze anos discutindo qual seria o processo mais adeqüado para fazê-lo sem danificar a relíquia renascentista de 500 anos, cinco metros e seis toneladas.

E, como se não bastassem todos esses cuidados, o museu iria também, na época em que li a reportagem, instalar um sistema high-tech que criaria um muro de ar puro invisível, em volta da estátua, com o objetivo de protegê-la dos efeitos corrosivos do pó trazido pelos visitantes!

Nos últimos dias, tenho pensado muito nessas esculturas e nesse tema da preservação do patrimônio histórico e cultural. E, como também tem me ocorrido este ano, foi Lenine quem, mais uma vez, me conduziu a essas reflexões.

O “Samba de uma nota só", de João Gilberto, todos conhecem. Porém, a meu ver, Lenine fez uma canção (presente no CD InCité) que poderia ser chamada de “Música de uma palavra só”, ou melhor de duas palavras só: “Virou areia”.

“Cadê a esfinge de pedra que ficava aqui?
Virou areia, virou areia
Cadê a floresta que o mar já avistou dali?
Virou areia, virou areia
Cadê a mulher que esperava o pescador?
Virou areia, virou areia”


Sim, o destino das coisas criadas pelo homem parece mesmo ser o de "virar areia". Afinal de contas, mesmo com todos os cuidados descritos acima, no que se refere à escultura de Davi, ela não vai durar para sempre.

Mas, como sugere a última frase dessa primeira estrofe da canção, não é somente as obras dos homens que desaparecem, mas também o próprio homem. Aliás, "virar areia" foi o legado que Adão (e toda a humanidade) recebeu como castigo por sua desobediência:

“Do suor do teu rosto comerás o teu pão,
até que tornes à terra, porque dela foste tomado;
porquanto és pó, e ao pó tornarás”.
[Genesis 3:19]

É, portanto, a luz deste legado que o autor de Eclesiastes (ironicamente: o “filho de Davi”, cuja escultura os especialistas do museu de Florença tentam preservar) fala que o destino de todos os homens é um só:

“Todos vão para um lugar,
todos são pó,
e ao pó tornarão.”

[Eclesiastes 3:20]

Tempos atrás, um amigo me dizia que nós, humanos, estamos destinados ao fracasso: por mais que nos esforcemos por nos tornar pessoas melhores e nos aperfeiçoar ou ainda nos mantermos jovens, um dia deixamos tudo para trás. Em suma: “viramos areia”, na expressão de Lenine.

Sim, esta pode não ser a reflexão de fim de ano mais otimista que você já ouviu nos últimos tempos. Mas, penso que se não meditarmos vez em quando nesta verdade, podemos correr o risco de ocuparmos nossas vidas com a ilusão de continuarmos sempre jovens, até que um dia, enfim, acordemos já demasiadamente tarde para deixar outro legado, à Terra, senão um pequeno monte de areia.