03. Do It: the end

Do It: the end







“Não se submeta” - assim termina a canção “Do It” de Lenine. Com esta breve frase, o compositor simbólicamente subverte não somente a estrutura na qual a letra da música foi construída como também o seu próprio tema. Senão, vejamos.

Quase toda a letra desta canção foi construída sob a base: “se está com este problema, faça isto (do it)”. Assim, depois de apresentar uma infinidade de “soluções simples para um mundo complexo”, num embalo rítmico empolgante, no final, a canção concluí apresentando uma solução para a qual não foi mencionado nenhum problema:

"Se escreveu, remeta
Engrossou, se meta
Quer dever, prometa
Pra moldar, derreta
E não se submeta
E não se submeta."

Desta forma, ocorre então a primeira subversão: a da estrutura poética sobre a qual a canção foi montada. A segunda acontece em relação ao tema da canção: o “do it”, isto é, os imperativos do pragmatismo da vida atual - que nos joga numa torrente de atividades e compromissos cujo sentido e razão nem sempre estão conectados às nossas vontades e que, talvez exatamente por isto, nos leva a questionar o sentido desta correria a qual nos submetemos.

Esse é, portanto, o provável problema colocado pela canção: os imperativos que nos conduzem à escravidão e ao vazio espiritual. No entanto, quem hoje pode dizer um não ao “do it” e continuar pagando as despesas cotidianas?...

Mas, ao menos no contexto do show de Lenine, o “não se submeta” é muito contagiante. Afinal de contas, nada como cantá-lo a plenos pulmões depois de inúmeras tentativas frustadas de lembrar a seqüência dos trechos desta canção cuja memorização é um desafio para o nosso cérebro - precário e maltratado pelas enxurradas diárias de informação.

Chegamos, então, à conclusão que o “não se submeta” seria apenas uma compensação psicológica e performática para a nossa submissão cotidiana? Nossa libertação estaria, assim, restrita ao plano simbólico e artístico?...

Bem, isto já seria uma grande conquista, mas penso que podemos ir além. Dias atrás, por exemplo, tive a alegre surpresa de encontrar esta expressão “não se submeta” num dos livros da Bíblia no que me pareceu ser uma boa aplicação deste anseio comum nos dias de hoje.

Não pretendo fazer grandes citações deste texto bíblico porque este não é, aqui, o propósito e o leitor poderá, se desejar, lê-lo na íntegra consultando a carta que foi escrita aos cristãos que moravam na Galácia e que foram, por isto, chamados de Gálatas – sendo este, portanto, o nome do livro na Bíblia.

Um dos temas da carta era o seguinte: o apóstolo, que havia lhes levado a mensagem de “boas novas”, lamenta que, depois de um certo tempo, os gálatas tenham voltado atrás no conhecimento de Deus ao se submeterem a um legalismo religioso que nunca fez parte da mensagem de liberdade que receberam. O apóstolo, autor da carta, então recomenda:

“Para a liberdade foi que Cristo nos libertou. Permanecei, pois, firmes e não vos submetais de novo a jugo de escravidão.” [Gálatas 5:1]

Por que esses cristãos tinham abandonado a liberdade espiritual para se submeterem a formalismos religiosos? O autor da carta também se pergunta isso e esclarece que as leis de Deus são semelhantes aos ensinamentos que recebemos dos pais quando crianças e que tem finalidade de nos proteger para que possamos chegar bem à vida adulta quando então, com discernimento, haveríamos de fazer nossas próprias escolhas baseado nos princípios que aprendemos.

Assim, não foi porque um dia nossos pais nos disseram “se pediu, agüenta” que devemos fingir, para nós mesmos (ou para a imagem paterna que foi interiorizada), que agüentamos firme enquanto que, na verdade, não estamos suportando uma situação que nos está tirando nossa humanidade ou nossa alma. Em alguns casos, como disse Cristo, “é melhor que se perca um dos teus membros do que todo o seu corpo”. [Mateus 5:29,30]

Um anti-exemplo deste princípio pode ser visto numa das cenas mais decisivas do filme “O Advogado do Diabo”, quando o diabo apresenta, ao advogado, a opção deste deixar suas atribuições profissionais para cuidar da sua esposa que estava emocionalmente fragilizada.

Talvez inspirado pelo imperativo (do it) “se pediu, agüenta”, ele nega-se a abandonar seus deveres profissionais respondendo que pode dar conta de ambos. Desta forma, o diabo obtém assim permissão para atingir o seu lado mais frágil (simbolizado por sua esposa) e fazer a devastação moral.

Mas, assim como não precisamos ter uma esposa para reconhecer o nosso “lado frágil”, não precisamos também ser tentados pelo próprio diabo para nos convencermos que esta questão está sempre diante de nós.