10. Rosebud (2)

Dolores e dólares





“Dolores, dolores, dólares!...”: assim começa a música “Rosebud (O Verbo e a Verba)” de Lenine. O trocadilho que converte Dolores, nome que alude à dor, para a moeda americana dá o tom para esta letra-poema que terá como personsagens dois dos principais temas do filme “Cidadão Kane” ao qual a música alude: o verbo e a verba, ou seja, o discurso e o dinheiro.

“Que dolor, que dolor que me dá los dólares” é uma das frases que encerra a canção e faz ecoar as dores que os dólares trouxeram ao protagonista do filme de Orson Welles e que, de certa forma, já eram previstas pelo próprio personagem quando, numa conversa pessoal, ele diz: “se eu não tivesse tanto dinheiro, talvez eu tivesse me tornado uma pessoa melhor”.

O leitor possivelmente achará que este personagem está (como diz o dito popular) “chorando de barriga cheia”, pois numa realidade social onde as famílias freqüentemente têm que fazer marabalismos para pagar as contas do mês, lamentar a riqueza é algo surreal.

No entanto, mesmo que o “lamento pelo excesso de dinheiro” não seja um hábito freqüente, vale a pena refletir sobre ele já que muitas pessoas acreditam que tornar-se rico é uma espécie de solução para todos os males, inclusive o da tristeza. Sim, todos sabem que isso é uma ilusão mas ela vem sendo tão vendida nas bancas de revistas e programas de TV que talvez não seja em vão lembrar um ou dois ensinamentos sobre isto.

O primeiro vem da própria música de Lenine, que faz alusão ao filme “Cidadão Kane” ou ao Rosebud que ele perdeu durante a vida:

“O verbo saiu com os amigos
pra bater um papo na esquina,
A verba pagava as despesas,
porque ela era tudo o que ele tinha.
O verbo não soube explicar depois,
porque foi que a verba sumiu.
Nos braços de outras palavras
o verbo afogou sua mágoa, e dormiu.”

Claro que esta primeira parte da canção, assim como acontece com outras músicas de Lenine, pode se adeqüar a uma variedade enorme de situações. Mas, com relação ao filme “Cidadão Kane”, que a música alude, esses versos podem representar a síntese do primeiro casamento de Kane onde ele sempre sai para dizer, através do jornal e depois, com sua candidatura, tudo aquilo que ele quer dizer.

É verdade que, neste momento, ele tem muitas coisas dentre as quais um dos principais jornais da época e um casamento aparentemente feliz. Mas, num diálogo com uma solitária pianista que acabara de conhecer, nota-se que ele também é alguém solitário e que, portanto, a verba era “tudo o que ele tinha”, ou seja, a única coisa que tinha...

Quando a música diz que “a verba sumiu”, isso possivelmente significa que não foi o dinheiro que sumiu da vida de Kane mas sim tudo o que ele tinha: as conseqüências da riqueza ou, para ser mais específico, os sonhos de poder que ela propiciava ao seu possuidor. Por isso, após o fracasso de seus planos, o verbo que representa, a palavra “afogou sua mágoa e dormiu”.

Seria possível, ainda, continuar a exposição do enredo de “Cidadão Kane” com base apenas na letra da canção do Lenine mas isto talvez tirasse do leitor o interesse em assistir ao filme e, eventualmente, em conhecer melhor a canção. Portanto, concluirei retomando apenas o que esta música tem em comum com o tema daquela que foi anteriormente tratada: a “Ninguém faz idéia”.

Quando tratei dessa canção pela última vez, eu disse que ela expressava uma verdade bíblica tratada no livro de Eclesiastes: a de que o sucesso, o prestígio e a riqueza nem sempre são conquistados com base no mérito pessoal, pois dependem sempre da combinação de outras variáveis como o tempo e o acaso.

Esta canção de Lenine mostra, então, como que até mesmo uma grande riqueza não é suficiente para se garantir o sucesso na vida. Por tudo o que Kane possuía (mansão, teatro, jornal, etc.), ele talvez fosse hoje bajulado como o bem-sucedido mas o que o filme nos mostra foi que ele nunca atingiu aquele objetivo pelo qual sacrificou toda a sua vida: o poder.

A maior tragédia, porém, é que além de não atingir o poder ele também nunca obteve aquilo que talvez fosse a sua verdadeira busca e que também é a busca íntima de todos nós mas, durante a vida, acaba sendo eclipsada por aquilo que, acreditamos, ser os meios para alcançá-la. Aliás, transformar o método em finalidade é algo mais do que comum - tanto na ciência quanto na vida secular. E, assim, o que importa e satisfaz nosso coração acaba se perdendo. Disso possivelmente sabia também o salmista quando escreveu:

“Agrada-te do Senhor, e ele realizará os
desejos do teu coração.”
[Salmos 37:4]