04. Vivo

Vivo




A primeira impressão que a música “vivo” me causou foi a de uma canção que brincava com as palavras, numa espécie de jogo poético de sinônimos. Isto, de fato, acontece quando Lenine canta, logo na primeira estrofe da canção:

"Precário, provisório, perecível,
falível, transitório, transitivo,
efêmero, fugaz e passageiro:
eis aqui um vivo"

Todos os adjetivos acima parecem sinônimos, embora o "transitivo" tenha um duplo significado já que é um qualificativo tanto do vivo (ser humano) como também de alguns verbos.

Este último detalhe então deu-me uma pista de que havia, na música, algo mais profundo do que um mero jogo de palavras como fez, por exemplo, Arnaldo Antunes na letra da canção "Poder", pois se, por um lado, "transitivo" é aquilo que dura pouco, ou seja, algo transitório e passageiro como a vida do homem na Terra, por outro lado, na gramática, é também um qualificativo dos verbos que necessitam de um ou mais complementos.

Assim, se lermos o "transitivo" com este segundo possível significado teremos que a vida do ser humano (o "vivo" da canção) é algo que também depende de complementos. E, de fato, depende, por exemplo: da vida, da companhia, da admiração, do reconhecimento e do amor de outras pessoas - a exemplo do que acontece também com a obra de um artista, que necessita do público.

Essas reflexões levaram-me à segunda impressão causada pela música "vivo": a de que seu compositor, apesar do sucesso que tinha alcançado com o lançamento do CD, a que pertence esta canção, tinha também consciência de quão efêmero, fugaz e passageiro é esta fama que já atingiu e se afastou de tantos outros músicos.

A terceira impressão ocorreu-me quando prestei uma atenção maior na terceira estrofe da música, onde o cantor diz que:

"E apesar - Do tráfico, do tráfego equívoco.
Do tóxico do trânsito nocivo; (...)
E apesar dessas e outras,
O vivo afirma, firme, afirmativo:
O que mais vale a pena é estar vivo."

Na época, eu estava relendo o livro de Eclesiastes, onde encontrei a ressonância dessas idéias na passagem que o autor diz que:

"Ora, para aquele que está na companhia dos vivos há esperança;
porque melhor é o cão vivo do que o leão morto.
Pois os vivos sabem que morrerão,
mas os mortos não sabem coisa nenhuma,
nem tampouco têm eles daí em diante recompensa. (...)"
[ Eclesiastes 9:4-5 ]

Certamente o leitor já ouviu a frase "enquanto há vida, há esperança". Parece piegas, mas a verdade é que, como diz a música, "apesar dessas e outras", isto é, de todos os fatores externos e internos ao ser humano, enquanto ele está vivo ainda há chances de que as coisas mudem e de que ele possa encontrar aquilo que seu espírito tanto deseja.

Mas, uma quarta e última impressão ocorreu-me quando, dias atrás, eu ouvia uma sinfonia (número 40) de Mozart. Ela tem uma abertura empolgante capaz de nos lançar numa agitação de espírito indescritível, mas que, ao fim desta abertura (molto allegro), entra num movimento mais calmo (andante) assim como, a propósito, acontece com o CD InCité de Lenine no qual, após a agitada "Do It", ouvimos a calmíssima "Vivo".

É notório que hoje vivemos num ritmo de vida bastante agitado e que, de tanto viver assim, acabamos incorporando-o como hábito, ou seja, acabamos tomando gosto por este estilo de vida e, a tal ponto, que às vezes achamos um tédio viver sem ele. Porém, a exemplo da abertura da sinfonia 40 de Mozart e da "Do It" de Lenine, viver sempre neste ritmo acabaria nos conduzindo a um enfarto - real ou simbólico. Por isso que, após um "molto alegro", nada como um "andante" para lembrarmos que andar (e não somente correr) também faz bem ao “vivo” que, entre tantos significados, é também um tempo musical.