17. Anna e eu

"Olhei pra trás"



A originalidade das composições de Lenine é algo que me impressiona. Mas, na música "Anna e eu", ele conseguiu ir além - não somente devido à poétic da letra da canção como, também, devido ao seu conteúdo que me fez rever um paradigma. Vamos inicialmente à música, que começa assim:

"Andei pra chegar tão longe,
e daqui de longe eu olhei pra trás."

Nas minhas leituras bíblicas, eu havia aprendido que não se deve "olhar pra trás". Achei que sabia o significado disso, quando então a canção de Lenine me se fez repensar o assunto, pois, ao contrário do que ensinava Cristo, o eu lírico da canção "olhava pra trás". Fui então levado a compreender melhor o que Cristo havia dito:

"Jesus lhe respondeu:
aquele que põe a mão no arado e olha pra trás
não está apto para o Reino de Deus".
[Lucas 9:61]

Quando Cristo disse essa frase acima, ele a utilizaou em resposta a alguém que havia recebido o chamado para seguir a Cristo, mas que havia apresentado, como desculpas, outras obrigações e deveres que tinha ainda que realizar.

Assim, ao responder-lhe que "aquele que põe a mão no arado", isto é, no trabalho para o qual Deus lhe chamou e que "olha pra trás", isto é, lamenta-se do que teve que abrir mão para atender a esse chamado não é, portanto, "apto para o Reino de Deus", ou seja, para ser um discípulo de Cristo.

As questão parecia, então, resolvida pois a música de Lenine não fala de nenhum chamado para seguir a Cristo, mas, sim, do "chamado de Anna", sua amada:

"Ouvi Anna me chamando.
Disse se eu não fosse, eu não ia mais".

Curiosa e bonita esta frase. A primieira imagem que ela me traz à mente é a de uma situação na qual a namorada dá um ultimato, direta ou indiretamente, ao namorado dizendo que "é agora ou nunca" que eles unirão seu destino num compromisso mais definitivo. Ao que parece, Lenine foi e não se arrependeu.

Há, assim, certa semelhança no chamado de Cristo, em particular quando ele lança um convite para alguém seguí-lo. Claro que esse alguém, ao contrário do que aconteceu na música de Lenine, procurou se esquivar do chamado.

Mas, cá entre nós, nem mesmo um ultimato de uma namorada é aceito assim de prontidão de maneira igual por todos. A meu ver, se há algo a lamentar numa situação como essas, não é o fato da pessoa ficar retiscente em aceitar mas, sim, em querer voltar atrás depois de dado o passo definitivo.

Mas, se minha comparação parasse neste ponto ela ficaria incompleta, pois, salvo engano, quando Cristo utiliza esta expressão "olhar para trás", ele está fazendo também referência a uma história muito conhecida da Bíblia: a de Sodoma e Gomorra, em particular no que se refere à mulher de Ló.

Essas duas cidades são notoriamente conhecidas pela depravação sexual em que haviam caído. Ao menos isto é o diz o senso comum, pois, na verdade, a afronta que eles faziam a Deus era bem maior que essa. Bem, por conta disso, Deus revolve então destruir essas cidades. Mas, alguém, que tinha um parente lá, intercede por ele (Ló) e, assim, Deus envia um anjo para resgatar essa família da destruição iminente das cidades.

A família então já havia deixado a cidade, com a orientação de não olharem para trás quando Deus a destruisse. Bem, dito e feito: quando o fogo começa a devorar a cidade, a mulher de Ló olha para trás e, no mesmo instante, conforme havia advertido o anjo, ela se transforma numa estátua de sal. (Gênesis 19:26)

Como se pode deduzir, o problema em "olhar para trás", aqui, não estava propriamente no gesto, mas, sim, no que ele simpbolizava: em primeiro lugar, a desobediência de Deus; e, em segundo lugar, porque, nesta situação, só olha pra trás aquele que lamenta o que está deixando.


Creio, portanto, que é com base nessa história que a expressão "não olhar para trás" de Cristo ganha um sentido e uma força mais expressiva. Porém, não é este o significado do "olhar pra trás" da música de Lenine. Ele não olha pra sua vida lamentando aquilo que deixou, quando decidiu atender o chamado do amor de Anna. Muito pelo contrário, ele diz que:


"Andei pra chegar mais longe
E de lá de longe me ver feliz.
Andei pra valer a pena,
Olhei pra trás, pro que é meu
Nosso Passado me aecna
Pelo que foi, já valeu!"


Portanto, quando ele olha pra trás ele, na verdade, olha pra tudo aquilo "que é meu", ou seja, para o que ele já construiu e edificou nessa caminhada conjunta com sua amada. Se haverá aidna algo a mais para se construir, isso só o futuro dirá. Quanto ao presente, a única coisa que ele pode afirmar é que "pelo que foi, já valeu".


E essa última frase é cantada duas vezes, e dentre de um acorde musical que, ao que parece, não resolve a tensão própria da harmonia desta música. Isso, de fato, parece acontecer somente mais tarde, depois de um belíssimo sólo de berimbau.

Com isso, a impressão que se tem é que esta irresolução da música reflete uma inconclusão da própria caminhada amorosa do cantor que ainda continua, mesmo depois de finalizada suas reflexões sobre aquilo que já viveu.