22. O Marco Marciano (1)



Marco Zero






"O Marco Marciano" (a última faixa do álbum InCité) é, na verdade, um trecho de uma música maior, de mesmo nome, gravada anteriormente no álbum "O Dia em que faremos contato".

Esta não é a única música, do álbum InCité, que havia sido num disco anterior de Leinine. Por que motivo, então, diferentemente do que ocorreu com "Rosebud", "Caribenha Nação" e outras canções, Lenine canta apenas a primeira e a última estrofe?

Bom, a resposta definitiva somente Lenine poderá dar. Isso, se um dia ele o fizer, pois creio que cabe a nós, intérpretes de sua obra, pensar nessas razões. E a razão que me vem à mente remete à uma entrevista que Lenine deu, certa vez, para a TV Cultura, na qual afirmava que o mínimo que se deve exigir de um álbum é uma coerência, o que, por dedução, aplica-se à sua obra.

Salvo engano, a época dessa entrevista correspondeu ao lançamento e divulgação do seu disco "O dia em que faremos contato" que foi todo composto com referências a obras de ficção científica com o que, diga-se de passagem, Lenine trabalhou como tradutor durante um tempo. É a este álbum que pertence a música aqui em questão. É, portanto, diante desse contexto que deve ser encarado o conteúdo da letra dessa música, que inicía-se assim:

"Pelos auto-falantes do universo
Vou louvar-vos aqui na minha loa
Um trabalho que fiz noutro planeta
Onde nave flutua e disco voa
Fiz meu marco no solo marciano
Num deserto vermelho sem garoa"

Porém, a que obra de ficção esta letra se refere? Esta é uma questão que não consegui ainda descobrir. E para fazê-lo teria que adentrar num universo que, ao que parece, não corresponde à linha de composição que dá unidade e coerência ao álbum InCité.

Claro que a autoreferência à sua obra, através da incorporação de uma música gravada anteriormente, tem sua razão de ser, que só fica evidente se analisarmos o tema que veio sendo desenvolvido desde a primeira faixa do disco. Senão, vejamos.

- Na canção "Do It", o compositor nos coloca dentro do unvierso frenético dos imperativos do mundo atual onde somos obrigados a sempre estarmos ocupando tendo que "fazer algo".

- "Vivo", a segunda canção, mostra o outro lado da questão, isto é, a precariedade da condição do ser humano que tem que fazer tanta coisa. Trata-se, enfim, de uma contraposição interessante porque mostra como que, apesar da alta produtividade isto não leva necessariamente à uma melhoria da condição precária do ser humano.

- E se o estar alinhado com esses imperativos, isto é, conseguir adequar-se a este estilo de vida frenético poderia trazer ao indivíduo alguma esperança de felicidade, a canção "Ninguém faz idéia" nos retira esta ilusão afirmanado que nada, nem mesmo a capacidade de atender a esses impoerativos modernos, é capaz de nos garantir um lugar ao sol.

- "Todos os Caminhos" continua o desenvolvimento dessa idéia, trazida pela canção "Ninguém faz idéia" ao aprsentar a narrativa de alguém já adulto que, no auge da sua maturidade, começa a se perguntar se o fato de não ter realizado seus sonhos e desejos nasce da sua insuficiência humana ou é um fruto das limitações da sua época concluindo, por fim, que o "certo é que eu não sei o que virá".

- E se alguém ainda tinha a ilusão de que o dinheiro pode ser a solução de todos os problemas viabilizando, assim, a realização dos nossos sonhoes e desejos, a canção "Rosebud", ao retomar a saga do milinário protagonista do filme "Cidadão Kane" mostra que, nesse contexto, as incertezas e a precaridade da condição humana também são vivenciadas até pelos mais ricos.

- E, dentro dessa linha de reflexão existencial (sobre a precaridade da condição humana frente aos imperativos de sucesso na vida), a canção "Virou Areia" parece colocar um ponto final, ou um ponto e vírgula talvez, lembrando que por mais realizaçõees que alcancemos, nesta vida, um dia teremos que deixá-la e tudo o que, nela, construímos, assim como nós mesmos, se tornará pó e areia.

E se falo em "ponto" ou "ponto e vírgula", digo-o porque, embora essa grande reflexão existencial pudesse acabar aqui ela será ainda retomada a partir da canção seguinte. Porém, sob uma ótica um pouco diferente. Razão pela deixarei para me ocupar com o assunto no texto seguinte.