18. Caribenha Nação

Um batuqe que abala o firmamento



Há poucos anos atrás, tive a oportunidade de ir num evento, em São Paulo, chamado "Fórum Cultural Mundial". A princípio, pareceu-me uma proposta bastante interessante. Afinal de contas, por que apenas o "fórum econômico" ou o "fórum social" deveria ser mundial? No entanto, a proposta parece ter morrido neste primeiro congresso.


Tinha visto na programação que um famoso grupo de Maracatu iria se apresentar. Como faltava ainda uma meia hora para o início da apresentação, me embrenhei na mata de stands de cultura do centro de convenções do Anhembi até que, de repente, ouvi o batido de um dos tambores.


Lembro-me que foi como ouvir um chamado tribal, no meio da mata. O chamado de um "batuque que abala o firmamento", conforme diz a música de Lenine com que pretendo me ocupar aqui: "Caribenha Nação".


"É a festa dos negros coroados
Num batuque que abala o firmamento;
É a sombra dos séculos guardados
É o rosto do girasol dos ventos."


O maracatu é algo que sempre esteve presente na carreira musical de Lenine, sobretudo no primeiro disco, de 1983, cujo nome, "Baque Solto" já é por si uma referência direta a um dos tipos de maracatu: o "baque solto" que equivale ao ritmo empregado no Maracatu Rural, enquanto que o "baque virado" refere-se ao Maracatu Nação.


No segundo disco que Lenine gravou, "Olho de Peixe" de 1993, o tema do maracatu volta a estar presente. Desta vez, com a canção "Caribenha Nação", que depois então seria regravada no disco InCité. A propósito, a música aqui em questão.


Já no terceiro disco de Lenine, "O Dia em que faremo contato" de 1997, o tema do maracatu aparece na música "Que baque é esse?", cujo trecho transcrevo a seguir:


"E o maracatu passou
Já com o bombo batendo fofo.
Só quem vai atrás
É capaz de entender
Toda essa magia
A nega dançando,
E a negada babando na fantasia."


De fato, como diz a letra da canção, "só quem vai atrás é capaz de entender essa magia", pois, de nada adianta eu ficar explicando as particularidades do Maracatu ou a relevância que Lenine lhe dá, ou ainda a euforia que sua batida causa em mim. De nada adianta porque, por mais eloqüente que eu fosse, dificilmente eu conseguiria passar para o leitor aquilo que só se sente ao experimentá-lo, ou seja, ao ver um maracatu passando.


Aquela experiência no Anhembi não foi a única oportunidade que tive de ver um maracatu. Felizmente, tive a grata experiência de assistir um em Olinda. E, de fato, quando passa a "nega dançando", como diz a música de Lenine, fica-se "babando na fantasia". Não somente na fantasia que as mulheres (negras e brancas) vestem, e que é realmente belíssima, mas também em toda essa fantasia que nos transfere para um outro mundo de fantasia, ritmo, força e felicidade.


Mas, eu não precisaria ter ido até Olinda ou até este fórum mundial em São Paulo, para assistir um maracatu. Em Campinas mesmo há pelo menos um grupo de maracatu, que faz, inclusive, um belo trabalho de inclusão social junto à população de um bairro de periferia da cidade. E as apresentações deles, apesar de ser algo um pouco raro, são belíssimas.


O maracatu tem origens africanas. Faz parte de uma cultura que foi trazida, dizem, pelos negros de origem nagô na época da escravidão no Brasil. Dada as condições a que esses, então escravos, foram submetidos, é de se surpreender que uma cultura tão bonita assim tenha sobrevivido ou se desenvolvido.


Não sou negro e, até onde sei, não tenho nenhuma ascedência nagô. Nem tampouco cresci ouvindo o maracatu. Pelo contrário, o conheci somente há poucos anos atrás. Mesmo assim, não consigo ficar imune à sua batida e à sua magina. Assistí-lo me deixa absorvido, e não assistí-lo me traz uma certa nostalgia; uma espécie de lamento como o de Davi quando dizia que:


"Dentro de mim derramo a minha alma
ao lembrar-me de como eu ia com a multidão,
guiando-a em procissão à casa de Deus,
com brados de júbilo e louvor,
uma multidão que festejava."
[Salmos 42:4]


Neste Salmo, não é possível saber por que Davi, sendo ainda rei, não podia mais guiar a multidão em festa à casa de Deus. Poderia ser que talvez fosse um momento em que a nação recebia o ataque de inimigos, ou também o pecado que Davi cometeu e que lhe trouxe tanto pesar.


De qualquer maneira, minha nostalgia parece ser um "sentimento fora de lugar" pois, afinal de contas, festejos como esses não são uma tradição em São Paulo, sobretudo nos dias de hoje. Assim, parece que só me resta, a exemplo de Davi, lamentar o que um dia presenciei e que não faz mais parte do presente. Muito embora, sempre exista uma forma de acessar a porta que dá acesso à essa magia.